Falta de produtos em prateleiras britânicas e embargo em transações comerciais acontecem entre a UE e o Reino Unido desde que o Brexit foi assinado. A Sputnik Brasil entrevistou analista para saber o que esperar do futuro entre essa relação após quase um ano da retirada britânica do bloco.
Desde o dia em que Brexit foi assinado, em 31 de janeiro de 2020, União Europeia (UE) e Reino Unido travam discussões para chegarem a um acordo que possa normatizar as políticas econômicas entre o bloco e Londres.
Um dos pontos mais sensíveis relacionado à questão ficou localizado na Irlanda, uma vez que a parte Sul do país faz parte da União Europeia e a parte Norte faz parte do Reino Unido, e como possível solução criou-se o Protocolo da Irlanda do Norte.
Entretanto, Londres agora exige que Bruxelas realize uma revisão drástica do protocolo, começando pela retirada de uma de suas disposições fundamentais: a supervisão judicial da aplicação do tratado na região por parte do Tribunal de Justiça da UE, segundo a Bloomberg.
Com isso, uma possível ameaça britânica começou a ficar bastante clara: se Bruxelas não aceitar suas condições, o Reino Unido poderia implodir o tratado e iniciar uma guerra comercial.
A Sputnik Brasil entrevistou Leonardo Trevisan, professor de Relações Internacionais da ESPM/SP e especialista em História das Relações Internacionais e em Geoeconomia Internacional, para entender como estão as relações entre o bloco e Londres e se realmente uma pressão britânica pode levar a problemas mais drásticos.
Indagado se o conflito econômico entre a UE e Reino Unido pode se transformar em uma guerra comercial, Trevisan explica que o conceito de guerra comercial compreende que, os dois lados, tenham aproximadamente o mesmo peso e tamanho econômico, características que não são observadas entre o bloco e Londres.
"É preciso lembrar que o Reino Unido representava menos de 15% do PIB de toda UE", destacou.
Outro dado citado pelo especialista é em relação às exportações, uma vez que "51% das exportações britânicas em 2019 tinham como destino a União Europeia, enquanto apenas 13% das exportações do bloco seguiam para o Reino Unido".
"Essas informações sobre o volume de exportação já definem bem como há uma desigualdade de potência exportadora entre os dois lados, portanto, uma guerra comercial sequer pode ser proposta dado ao peso econômico do bloco quando comparado ao Reino Unido."
Pressa eleitoral e estratégia francesa
Após o Brexit, além das questões econômicas, outro forte ponto discutido entre o bloco e Londres é a questão da Irlanda, que de acordo com Trevisan, é "bastante tensa e de difícil solução para o contexto do Reino Unido".
Um dos motivos para o contexto atual envolvendo Dublin foi "a saída britânica abrupta do bloco, executada pelo governo de Boris Johnson, para ganhar as eleições com uma promessa eleitoral".
"Esta decisão de apressar o Brexit sem negociação teve custo. Uma série de situações comerciais que poderiam ter sido acordadas teve que ser feita de forma abrupta, é exatamente este ponto que envolve uma pressão brutal sobre a saída de produtos europeus para o contexto do Reino Unido."
O professor explica que "havia uma cadeia de produção global entre Londres e o bloco que foi cortada de forma súbita. Sendo assim, o Reino Unido se transformou em qualquer país que negocia com a UE, ou seja, existem diversas obrigações burocráticas e padrões econômicos para entrada e saída de produtos, essa é a razão da fila de caminhões".
Um dos mais importantes países do bloco, a França por muitas vezes se posiciona rigorosamente sobre os protocolos com o Reino Unido. Trevisan elucida que isso acontece porque "o principal concorrente da poderosa indústria de laticínios francesa eram, exatamente, os laticínios britânicos".
"A França está exigindo que a burocracia em relação ao Reino Unido seja a mesma com qualquer outro país que não pertença à UE, em outras palavras, Londres teria que passar pela mesma inspeção e pagar os mesmos impostos. Na prática, é um negócio bastante rendoso para esse setor industrial francês, e por isso Paris quer fazer valer de fato a saída britânica do contexto europeu, com a intensão de perder seu maior concorrente."
Irlanda do Norte
No começo de outubro, o ministro das Relações Exteriores da Irlanda, Simon Coveney, acusou o governo britânico de criar novas linhas vermelhas ao pedir a remoção do Tribunal de Justiça Europeu da Irlanda do Norte e questionou se o Reino Unido realmente deseja um caminho acordado para o futuro ou um colapso nas relações.
A UE está trabalhando seriamente para resolver questões práticas com a implementação do Protocolo - então o Reino Unido cria uma nova barreira de "linha vermelha" para o progresso, com a qual eles sabem que a UE não pode seguir em frente. Estamos surpresos? Real questão: O Reino Unido realmente deseja um caminho acordado a seguir ou um colapso adicional nas relações?
Trevisan diz que Coveney tem toda razão, pois Londres precisa decidir "se quer uma saída acordada ou uma saída súbita no sentido de uma ruptura total, o que no caso, o ministro chamou de 'colapso'".
"O que está em jogo para o chanceler usar esse vocabulário radical é a integração econômica existente entre as duas Irlandas. Não há fronteira traçada entre a do Norte e a do Sul, os produtos são fabricados 'em pedaços' exatamente para criar uma dependência econômica entre as duas regiões. Porém, a Irlanda do Sul continua a fazer parte da União Europeia, enquanto a Irlanda do Norte faz parte do Reino Unido e terá que, obrigatoriamente, sair do contexto do mundo europeu."
A solução seria a criação de uma fronteira entre os dois países para demarcar os produtos irlandeses que sairiam para Europa, mas "como fazer essa fronteira se há essa integração da cadeia produtiva dentro de toda Irlanda [...]? É nesse processo que a tensão da questão da Irlanda é a mais sofisticada".
"Na prática, os quase cinco milhões de irlandeses do norte teriam que deixar de pertencer ao Reino Unido, coisa que eles não admitem. Ou abrirem uma discussão sobre a independência da Irlanda do Norte, o que traria a guerra civil novamente", ponderou o especialista.
Para resolver a questão, Boris Johnson propôs uma fronteira marítima quando os produtos da Irlanda do Norte chegassem aos portos ingleses e essa situação, na realidade, romperia os acordos firmados com a UE. Em seguida, conta Trevisan, "o bloco entrou com recursos legais e a Suprema Corte do Reino Unido deu razão à União Europeia".
"Esse contexto criou uma situação anómala e inesperada [...], entretanto, Johnson 'teimou' em romper as leis internacionais e fazer esse processo abruptamente, ou seja, o comércio parou. Em resposta, a Suprema Corte inviabilizou o comércio [...] e é esse processo que agrava, de forma muito profunda, as relações comerciais entre Irlanda do Norte e Reino Unido."
O especialista aponta para necessidade de o primeiro-ministro britânico de sentar e conversar com o mundo europeu, no entanto, tal diálogo "implicaria em uma solução negociada, ou melhor, em uma derrota política de Boris Johnson que prometeu ao seu eleitorado uma saída brusca do bloco".
"Esta tensão só vai agravar as condições econômicas do próprio Reino Unido, que envolvem gasolina e ausência de produtos. E todo esse cenário só tende a ficar, cada vez mais grave, para o pobre consumidor britânico", considerou Trevisan.
Consequências do Brexit
Para o especialista, o passar do tempo na relação Reino Unido-UE, só vai escalar maiores tensões, uma vez que, como citado anteriormente, "o bloco europeu não precisa tanto de Londres para sobreviver comercialmente, mas o reverso não é igual".
"Havia toda uma estrutura produtiva montada nas relações comerciais entre o Reino Unido e o mundo europeu [...]. Em junho deste ano, 70% das exportações de alimentos da Inglaterra para Irlanda caíram, 63% das exportações britânicas para Itália também caíram, seguido de 61% para Alemanha e 72% para França."
Além disso, Trevisan evidencia que há diferença não só no quadro econômico, como também no acadêmico, no que tange a formação de pessoas, o qual também apresentou queda com a nova formatação.
"930 mil bolsas do Erasmus serão perdidas. De alguma forma, o mundo europeu não receberá mais estudantes britânicos e também não pagará mais as bolsas para que seus estudantes cursem universidades no Reino Unido. O prejuízo é muito sensível, quando olhamos para esses números temos a ideia exata de quem vai perder mais nesta ruptura."
Comércio com EUA seria a solução?
Especialistas comentam sobre a criação de uma zona de livre comércio entre os EUA e a Comunidade Britânica de Nações. Ao ser questionado se a aliança pode ser alcançada e até mesmo "salvar" o mercado britânico, Trevisan diz que, mesmo com toda identificação histórica entre os dois, isso não seria suficiente, uma vez que "as economias não são complementares, são concorrentes".
"Os produtos que eventualmente o Reino Unido fabrica, os EUA também fabricam. Não há uma possibilidade de complementaridade dessas duas economias como existia entre o bloco e a produção britânica."
O especialista ressalta que um dado muito importante sobre essa integração, porém pouco comentado, é a troca entre UE e Reino Unido na indústria química.
"Desde os anos 1980, por uma decisão de Bruxelas, o mundo da indústria química ficou com o predomínio de produção britânica para o contexto europeu, esse era o sentido dessa complementaridade. Essa não é a realidade que pode existir com o contexto norte-americano, a indústria britânica é concorrente dos EUA. [...] incluindo o cenário agrícola, o qual não terá espaço de preço."
Brexit e Brasil
De acordo com o professor, logo assim que o Brexit foi assinado, houve uma onda efusiva no Brasil de que o mercado brasileiro poderia ocupar espaços perdidos do bloco europeu, entretanto, "o que se viu ao longo de um ano, e não só por conta da pandemia, é que esses acordos não saíram".
"Os preços dos produtos brasileiros no contexto britânico são muito caros. É difícil esses acordos acontecerem porque há barreiras de proteção a esses produtos, já que a economia brasileira, assim como a dos EUA, não é complementar à britânica, é concorrente."
Trevisan também comenta que, "na pauta de exportação específica da Inglaterra, tem um espaço bastante reduzido para exportação brasileira, ela oscila, de ano a ano, entre o 15º e o 20º lugar na pauta de exportação do Brasil".
"Para termos uma ideia do que estamos falando, a China compreende 35% das exportações brasileiras, os EUA 22% e a UE 18%. Basta somarmos isso para vermos que sobra pouco espaço para outros mercados."
Polexit e Hungria: integridade da UE ameaçada?
No dia 10 de outubro, 100 mil poloneses foram às ruas para defender a União Europeia e a estada da Polônia como um Estado-membro do bloco. O temor começou quando, naquela mesma semana, o governo polonês decidiu que partes da lei da UE são incompatíveis com a constituição do país, segundo a BBC.
Além da Polônia, outra nação que parece estar mais relutante por sua permanência no bloco é a Hungria. De acordo com Trevisan, o que motiva esses países são causas diferentes do que as que motivaram a saída do Reino Unido.
"A Polônia e a Hungria são países muito dependentes dos auxílios de Bruxelas para diversos programas de desenvolvimento nesses países", afirma, "além disso, cerca de 85% da exportação agrícola da Polônia [...] é absolutamente dependente do contexto europeu", o que levou Varsóvia a pensar "duas vezes no peso econômico de uma ruptura com a União Europeia dada a sua necessidade de exportação de commodities".
Já a Hungria, tem uma situação delicada que envolve uma negociação com o bloco, pois, segundo o professor, o país serve "como uma espécie de barreira para entrada de imigrantes na Europa" e "certas nuances do governo de Viktor Orbán foram até 'compreendidas e aceitas' por Bruxelas dado os acordos referentes a essa entrada que a Hungria segura".
Contudo, Trevisan afirma que o bloco vai "fixar bastante limites a uma ascendência, a um crescimento de perspectivas não aceitas pelo contexto europeu em relação ao lado húngaro".
"Para integridade da UE, é claro que a questão Polônia e Hungria é muito sensível, são fronteiras do leste que de alguma forma foram agregadas e têm importância estratégica e geopolítica para Europa, porém, há alguns limites."
O especialista salienta que "existem mudanças no cenário político interno desses dois países, e ao se confirmar essas mudanças, esses riscos de uma ruptura entre Polônia e Hungria com a UE serão reduzidos".
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